15/01/2024

Responsabilidade do administrador nas sociedades limitadas e anônimas

  1. Desconsideração da Personalidade Jurídica

Outra maneira de se responsabilizar o administrador por atos cometidos durante a condução da empresa é pela desconsideração da personalidade jurídica. Não se trata de responsabilização direta da pessoa natural em razão de seus atos, como nos casos até aqui estudados, mas sim de responsabilização subsidiária, verificada quando da incapacidade da sociedade em adimplir suas obrigações e observados determinados pressupostos legais. Assim, com a desconsideração, ocorrerá a ineficácia pontual da personalidade jurídica da empresa, imputando-se as obrigações por ela incumpridas a sócios e administradores.

A desconsideração teve sua origem relacionada à jurisprudência anglo-americana da virada do séc. XIX para o XX, a partir da observação de que, muitas vezes a pessoa jurídica era utilizada por sócios e administradores como forma de praticar abusos e atos fraudulentos sem que pudessem responder pessoalmente por seus ilícitos. Dessa maneira, para evitar esse tipo de prática passou-se a admitir a desconsideração da personalidade jurídica (ou na expressão inglesa, o levantamento do véu da pessoa jurídica), de modo a atingir o real responsável pelo dano causado aos credores da empresa.

O desenvolvimento jurisprudencial se espalhou também pela Europa continental e foi seguido por avanços de estudiosos. No Brasil, os primeiros casos de desconsideração remontam à década de 1950, embora o primeiro estudo tenha sido feito por Rubens Requião em 1969, passando por aprofundamentos de Lamartine Corrêa (A Dupla Crise da Pessoa Jurídica) e Fábio Konder Comparato (O Poder de Controle na Sociedade Anônima).

Entretanto, o instituto, só se consolidou na legislação com o Código Civil de 2002[1], que por meio de seu art. 50, permitiu a desconsideração da personalidade jurídica, quando da observação de “abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial”.

Nesse sentido, há duas hipóteses que permitem desconsiderar a personalidade jurídica, o desvio de finalidade e a confusão patrimonial. O desvio de finalidade, se refere às tendências jurisprudenciais e acadêmicas que exigiam que se desconsiderasse a personalidade jurídica da pessoa jurídica utilizada com aspirações fraudulentas, de modo a causar prejuízos a terceiros, evitando a responsabilização pessoal da pessoa física que agiu por trás da sociedade. Ou seja, ficará caracterizado o desvio de finalidade quando for possível constatar que a empresa serviu apenas como instrumento para que sócios e administradores pudessem praticar ilícitos com a proteção da limitação de responsabilidade. Nesses casos, a finalidade do objeto social da pessoa jurídica se torna “mera fachada”, nas palavras de Ricardo Negrão (2022).

Originalmente, a redação do art. 50 do Código Civil havia seguido uma orientação objetivistas, de modo que, observado o uso nocivo da personalidade jurídica, poderia o juiz desconsiderar a personalidade da empresa e atingir o patrimônio de quem por trás dela agiu. Entretanto, como pontua Gustavo Diniz (2022), a Lei de Liberdade Econômica (Lei 13.874/2019) alterou essa tendência, tornando o desvio de finalidade por parte do sócio ou administrador subjetiva. Assim, há que se demonstrar o propósito (isto é, dolo) de lesar credores e praticar atos ilícitos para a caracterização do desvio de finalidade (art. 50, § 1° do Código Civil).

Já a confusão patrimonial, por sua vez, continua sendo hipótese objetiva de desconsideração, de modo que a desconsideração deverá ocorrer caso verificados os pressupostos dos incisos do § 2º do art. 50, independentemente de qualquer elemento volitivo. Os dois primeiros incisos do dispositivo preveem situações não exaustivas que permitirão desconsiderar a personalidade jurídica: o cumprimento repetitivo de obrigações do sócio ou administrador pela pessoa jurídica ou vice-versa e a transferência de ativos ou passivos entre pessoa natural e jurídica sem a efetiva contraprestação. O inc. III, por sua torna o rol da confusão patrimonial exemplificativo, ao se referir a outros atos de confusão patrimonial.

Uma vez verificados os pressupostos da desconsideração da personalidade jurídica, é importante que se delimitem aqueles que efetivamente responderão pelas obrigações da empresa. O entendimento majoritário da jurisprudência direciona-se no sentido de que as dívidas deverão ser imputadas àqueles sócios ou administradores responsáveis pelo ilícito que motivou a desconsideração (desvio de finalidade ou confusão patrimonial)[2]. Desse modo, não haveria que se falar em responsabilização de sócios ou acionistas minoritários, que não exerçam poder de controle, a menos que tenham efetivamente estado por trás de atividades abusivas e fraudulentas.

Entretanto, a Lei de Liberdade Econômica positivou uma exceção a tal regra, que já havia aparecido em algumas manifestações judiciais, de modo que agora também será possível atingir aqueles que se beneficiaram direta ou indiretamente do ilícito que motivou a desconsideração. Essa alteração, entretanto, vem encontrando alguma resistência na doutrina, com o receio de que venha a servir para atingir sócios ou administradores que não tenham participado de ilícitos indiscriminadamente (BARATA, 2020).

Importante mencionar o procedimento seguido pelos Tribunais para a aferição dos pressupostos da desconsideração. A declaração da desconsideração poderá ocorrer de duas maneiras: quando requerida já na petição inicial, quando a matéria poderá ser apreciada diretamente pelo juiz ou quando não for o caso, por meio de incidente processual, quando a possibilidade de se responsabilizar sócios e administradores será avaliada em processo paralelo (embora relacionado ao principal).

A justificativa da exigência de se instaurar o incidente processual (procedimento paralelo ao processo principal) para analisar a desconsideração reside na necessidade de que se observe o princípio do contraditório de modo que aqueles a que se pretende atingir com a desconsideração possam se defender. Como, no processo original, tais entes não estavam presentes no polo passivo da demanda, não poderiam exercer o contraditório, de modo que serão chamados ao incidente para que possam apresentar defesa.

O incidente de desconsideração da personalidade jurídica foi uma das inovações do CPC de 2015, de modo a resolver exatamente o problema relativo ao exercício do contraditório. Trata-se de uma inovação muito importante, uma vez que antes não havia um padrão para o procedimento a ser seguido nos casos de desconsideração, de modo que muitas vezes ela era a aplicada sem que os afetados tivessem a possibilidade de manifestar, ou mesmo de ofício.

Já na desconsideração requerida na petição inicial, os sócios ou administradores (ou outras empresas de determinado grupo econômico) que se pretende atingir poderão ser chamados ao processo original, razão pela qual não há a necessidade de instauração de incidente processual.

        1.1 Teoria menor

Até agora estudamos a chamada Teoria Maior da desconsideração da personalidade jurídica, que está na regra geral do Código Civil. Porém, a teoria da desconsideração da personalidade jurídica também foi prevista por outras normas especiais, como no Direito do Consumidor, no Direito do Trabalho e no Direito Ambiental. A desconsideração nestes casos é chamada teoria menor, uma vez que, diferentemente da regra do CC, não exige ilícito para ser caracterizada, por vezes bastando que a sociedade constitua um obstáculo ao adimplemento do débito para que se desconsidera a sua personalidade[3].

A justificativa para a positivação da teoria menor nesses casos está na configuração de relações desiguais, como nos direitos do consumidor e do trabalho e na proteção do interesse público, como no direito ambiental.

A desconsideração da personalidade jurídica no direito do consumidor está positivada no art. 28 do CDC[4], cujo caput estabelece a possibilidade de desconsiderar a personalidade da pessoa jurídica sempre que houver abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social, ou nos casos de falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração.

Entretanto, como se vê, o § 5° do referido artigo expande as situações de desconsideração a todos os casos em que se verifique que a personalidade jurídica constitui obstáculo à satisfação do crédito do consumidor. Este dispositivo gerou certa polêmica quanto à sua aplicação, de modo que alguns críticos entendem que ele poderia significar o fim da autonomia patrimonial da empresa no âmbito do direito do consumidor. Deste modo, argumentam que a leitura do § 5º deveria ser limitada pelo caput do art. 28. Entretanto, o entendimento majoritário da jurisprudência ainda opta pela aplicação literal do § 5° e sua independência em relação ao caput.[5]

Similarmente, no direito ambiental, a teoria menor da desconsideração impõe que os prejuízos ambientais causados pela pessoa jurídica sejam imputados aos sócios e administradores sempre que a personalidade da empresa dificultar a reparação de tais prejuízos. O instituto encontra-se no art. 4º da lei n. 9605: “Poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados à qualidade do meio ambiente”.

Já no direito do trabalho, a desconsideração se refere à possibilidade de se estender a responsabilidade por débitos trabalhistas entre as empresas de um mesmo grupo. Nesse sentido, o art. 2º, § 2º da CLT afirma: “Sempre que uma ou mais empresas, tendo, embora, cada uma delas, personalidade jurídica própria, estiverem sob a direção, controle ou administração de outra, ou ainda quando, mesmo guardando cada uma sua autonomia, integrem grupo econômico, serão responsáveis solidariamente pelas obrigações decorrentes da relação de emprego”. Entretanto, para a aplicação dessa regra, com a configuração de grupo de empresas, será necessária também a “demonstração do interesse integrado, a efetiva comunhão de interesses e a atuação conjunta das empresas dele integrantes”, não sendo suficiente a identidade de sócios (art. 2º, § 3º).

Existe também corrente doutrinária e jurisprudencial que defende a possibilidade de aplicação por analogia do § 5º do art. 28 do CDC às relações de trabalho. A justificativa para isso seria a existência de hipossuficiência que afeta tanto consumidores como trabalhadores. Entretanto, trata-se de uma interpretação bastante controversa, contando com muitos críticos que consideram que, o CDC, dada sua especificidade, não ter sua aplicação estendida ao direito do trabalho, de modo que não há uniformidade, nem na doutrina, nem na jurisprudência, quanto a essa possibilidade (nesse sentido, TOMAZZETE, 2022).

 


[1] Embora o art. 28 do CDC e outras leis especiais já permitissem a desconsideração, evidentemente, seu alcance era limitado.

[2] Nesse mesmo sentido, confira-se o Enunciado no 7 da I Jornada de Direito Civil do Conselho Nacional de Justiça: “Só se aplica a desconsideração da personalidade jurídica quando houver a prática de ato irregular e, limitadamente, aos administradores ou sócios que nela hajam incorrido.”

[3] Nesse sentido, veja-se a jurisprudência do STJ:

“A teoria menor da desconsideração, acolhida em nosso ordenamento jurídico excepcionalmente no Direito do Consumidor e no Direito Ambiental, incide com a mera prova de insolvência da pessoa jurídica para o pagamento de suas obrigações, independentemente da existência de desvio de finalidade ou de confusão patrimonial. – Para a teoria menor, o risco empresarial normal às atividades econômicas não pode ser suportado pelo terceiro que contratou com a pessoa jurídica, mas pelos sócios e/ou administradores desta, ainda que estes demonstrem conduta administrativa proba, isto é, mesmo que não exista qualquer prova capaz de identificar conduta culposa ou dolosa por parte dos sócios e/ou administradores da pessoa jurídica”.

REsp 279.273/SP, rel. min. Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 04/12/2003, DJ 29/03/2004.

[4] Art. 28. O juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração.

  • 1° (Vetado).
  • 2° As sociedades integrantes dos grupos societários e as sociedades controladas, são subsidiariamente responsáveis pelas obrigações decorrentes deste código.
  • 3° As sociedades consorciadas são solidariamente responsáveis pelas obrigações decorrentes deste código.
  • 4° As sociedades coligadas só responderão por culpa.
  • 5° Também poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores.

[5] Nesse sentido:

“A aplicação da teoria menor da desconsideração às relações de consumo está calcada na exegese autônoma do § 5º do art. 28, do CDC, porquanto a incidência desse dispositivo não se subordina à demonstração dos requisitos previstos no caput do artigo indicado, mas apenas à prova de causar, à mera existência da pessoa jurídica, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores”.

REsp 279.273/SP, rel. min. Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 04/12/2003, DJ 29/03/2004.

 

 

REFERÊNCIAS

BARATA, Rodrigo Rentzsch Sarmento. Alcance subjetivo da desconsideração da personalidade jurídica. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2020.

CAMPINHO, Sergio. Curso de direito comercial: direito de empresa. São Paulo: Editora Saraiva, 2023. E-book. ISBN 9786553627611.

CAVALCANTI, Eduardo Muniz M. Direito Tributário. Barueri: Grupo GEN, 2022. E-book. ISBN 9786559646203.

DINIZ, Gustavo Saad. Curso de Direito Comercial. Barueri: Grupo GEN, 2022. E-book. ISBN 9786559773022.

NEGRÃO, Ricardo. Curso de direito comercial e de empresa: teoria geral da empresa e direito societário. v.1. São Paulo: Editora Saraiva, 2022. E-book. ISBN 9786553620681.

RODRIGUES FILHO, Otávio Joaquim. Desconsideração da personalidade jurídica e processo: de acordo com o Código de Processo Civil de 2015. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2023.

SCHOUERI, Luís E. Direito Tributário. São Paulo: Editora Saraiva, 2022.

TOMAZETTE, Marlon. Curso de direito empresarial: teoria geral e direito societário. v.1. São Paulo: Editora Saraiva, 2022. E-book. ISBN 9786553620551.

Deixe um comentário